sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Sinhá - Chico Buarque e João Bosco - 2011



Se a dona se banhou
Eu não estava lá
Por Deus Nosso Senhor
Eu não olhei Sinhá
Estava lá na roça
Sou de olhar ninguém
Não tenho mais cobiça
Nem enxergo bem
Para que me pôr no tronco
Para que me aleijar
Eu juro a vosmecê
Que nunca vi Sinhá
Por que me faz tão mal
Com olhos tão azuis
Me benzo com o sinal
Da santa cruz
Eu só cheguei no açude
Atrás da sabiá
Olhava o arvoredo
Eu não olhei Sinhá
Se a dona se despiu
Eu já andava além
Estava na moenda
Estava para Xerém
Por que talhar meu corpo
Eu não olhei Sinhá
Para que que vosmincê
Meus olhos vai furar
Eu choro em iorubá
Mas oro por Jesus
Para que que vassuncê
Me tira a luz
E assim vai se encerrar
O conto de um cantor
Com voz do pelourinho
E ares de senhor
Cantor atormentado
Herdeiro sarará
Do nome e do renome
De um feroz senhor de engenho
E das mandingas de um escravo
Que no engenho enfeitiçou Sinhá

Certamente esta é a melhor musica que já vi nascer. É dessas músicas que, quando ouvidas pela primeira vez, antes de chegar ao final, já se tem a certeza que ficará para sempre. A melodia é cadenciada, cheia de sons a serem descobertos e já nos remete a um tempo passado, onde a estória aconteceu. Foi lançada no mais no disco: Chico, de Chico Buarque.


A música, uma parceria de Chico e João Bosco, é na sua grande parte narrada por um escravo que, com palavras, se defende das investidas violentas do feitor que o acusa de ter visto sinhá banhar-se no açude, sem roupa.
Se a dona se banhou
Eu não estava lá
Por Deus Nosso Senhor
Eu não olhei Sinhá
Estava lá na roça
Sou de olhar ninguém
Não tenho mais cobiça
Nem enxergo bem
O escravo inicia sua fala alegando não ter conhecimento do banho de sinhá (Se a dona se banhou), também diz que não estava no açude, que estava na roça. Numa tentativa quase desesperada, ele diz que não é de olhar ninguém, mas mesmo que fosse, não tem mais cobiça de olhar para uma mulher e, mesmo assim se tivesse, sequer enxerga bem.
Além da negação, que toma conta de praticamente toda a estrofe, há também uma tentativa de sensibilizar seu algoz, no terceiro verso (Por Deus Nosso Senhor) uma vez que, apesar de obrigados a seguir alguns costumes cristãos, a grande maioria dos escravos tem crenças africanas.
Para que me pôr no tronco
Para que me aleijar
Eu juro a vosmecê
Que nunca vi Sinhá
Por que me faz tão mal
Com olhos tão azuis
Me benzo com o sinal
Da santa cruz
Na segunda estrofe, cada vez mais desesperado, o escravo investe todas suas fichas na tentativa de sensibilizar seu senhor. Ele indaga porque será aleijado (e não é força de expressão) se está jurando que nunca viu sinhá. Numa tentativa de confundir, o escravo admite sua inferioridade e indaga porque o feitor sendo superior irá lhe fazer mal (Porque me faz tão mal, Com olhos tão azuis).
Por fim, mais uma referência ao cristianismo (Me benzo com o sinal, Da Santa Cruz).
Entre a segunda e terceira estrofe, onde temos uma parte apenas instrumental é possível identificar um som cadenciado, que depois se torna mais frequente e, na minha leitura se trata de chicotadas, proferidas contra o escravo.
Eu só cheguei no açude
Atrás da sabiá
Olhava o arvoredo
Eu não olhei Sinhá
Se a dona se despiu
Eu já andava além
Estava na moenda
Estava para Xerém
Após a seção de tortura a versão apresentada pelo escravo é mudada, e ele passa a admitir que esteve no açude, no entanto foi levado até lá porque seguia uma sabiá. Diz também que olhou apenas para as árvores, que não olhou sinhá, no entanto, automaticamente admite que sabia que ela estava lá.
A situação do pobre escravo só se complica, pois, na sequencia, ele alega que se ela tirou a roupa ele já havia saído, ou seja, enquanto ele estava lá, ela estava vestida, neste caso ele a viu, o que o faz entrar novamente em contradição.
Por que talhar meu corpo
Eu não olhei Sinhá
Para que que vosmincê
Meus olhos vai furar
Eu choro em iorubá
Mas oro por Jesus
Para que que vassuncê
Me tira a luz
Sempre usando a linguagem da época, e alegando que não viu sinhá, o escravo implora mais uma vez ao feitor, temendo além de ter seu corpo talhado, ter seus olhos furado como castigo por olhar quem não devia.
Nesta estrofe o escravo revela de maneira clara e inequívoca seu sincretismo religioso, recorrendo no momento maior de desespero à sua crença e à crença dos seus senhores (Eu Choro em Ioruba, Mas oro por Jesus).
Por fim, já descompromissado no tratamento (vassuncê), e frente a sua pena, ele ainda indaga ao seu algoz com que intuito ele acabou de lhe cegar.
Agora a música muda. Quem fala agora é Chico. O vocabulário é atual e até a métrica dos versos é outra.
E assim vai se encerrar
O conto de um cantor
Com voz do pelourinho
E ares de senhor
Cantor atormentado
Herdeiro sarará
Do nome e do renome
De um feroz senhor de engenho
E das mandingas de um escravo
Que no engenho enfeitiçou Sinhá
Chico se classifica como um cantor com voz de pelourinho e ares de senhor, uma referência às suas características físicas, com seus olhos azuis e, claro, a sua voz que é meio rouca e suja, como se diz no meio musical.
Indo bem mais longe do que em Paratodos (O meu pai era paulista, Meu avô pernambucano, O meu bisavô mineiro, Meu tataravô baiano) Chico buscou nos seus ancestrais o seu sangue sarará (mestiço de branco e negro), onde o branco erá um senhor de engenho (não sei se feroz) e a negra uma escrava, por quem ele se apaixonou e casou.
Abaixo uma transcrição do livro Buarque : uma Família Brasileira : Ensaio Histórico Genealógico, de Bartolomeu Buarque de Holanda, lançado no ano de 2011:
 “Eu quis mostrar estes personagens que foram marcantes na árvore genealógica da família. Acredito que, entre todas as ramificações, a mais curiosa é a que gerou a união de José Ignácio Buarque de Macedo (Senhor de engenho) e a escrava Maria José. Apesar de analfabeta, ela foi a primeira mulher na família a colocar o estudo como prioridade. Curiosamente, seus descendente fizeram jus à dedicação e geraram figuras como Aurélio Buarque, Chico Buarque e Cristóvam Buarque, entre outros”
No fim, mas não menos importante, Chico também se declara herdeiro das mandingas do referido escravo e entrega que de fato o escravo havia enfeitiçado sinhá e que aqueles que o castigaram “tinham razão”, dentro de sua ótica.
Ouçam a música, tenham a própria interpretação de vocês, mas tenham certeza que daqui há muito tempo ela ainda será lembrada, tocada, admirada e terá ainda muitas nuances a serem descobertas.

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Como Eu Quero - Leoni e Paula Toller - 1983






Diz prá eu ficar muda
Faz cara de mistério
Tira essa bermuda
Que eu quero você sério...
Tramas do sucesso
Mundo particular
Solos de guitarra
Não vão me conquistar...
Uh! eu quero você
Como eu quero!
Uh! eu quero você
Como eu quero!
O que você precisa
É de um retoque total
Vou transformar o seu rascunho
Em arte final...
Agora não tem jeito
Cê tá numa cilada
Cada um por si
Você por mim e mais nada...
Uh! eu quero você...
Longe do meu domínio
Cê vai de mal a pior
Vem que eu te ensino
Como ser bem melhor...
Longe do meu domínio
Cê vai de mal a pior
Vem que eu te ensino
Como ser bem melhor...
Uh! eu quero você...
 
Como eu quero, composta por Leoni e Paula Toller é a primeira faixa do Lado 2 do primeiro LP do Kid Abelha: Seu Espião, lançado em 1984. O LP é recheado de sucessos que, até hoje, quase 30 anos depois, está na ponta da língua de todo mundo, como: Fixação, Porque Não Eu? e Pintura Íntima.



Durante a produção do álbum discutia-se qual seria a música de trabalho. A gravadora (Warner Music) insistia para que fosse Alice (Não me escreva aquela carta de amor), mas a banda fincou pé e resolveu trabalhar em cima da música Pintura Íntima.
Pouco antes de fechar o álbum, faltando ainda uma música, Como Eu Quero, que havia sido descartada pelo produtor, foi escolhida para completar o LP, numa decisão pessoal de Leoni e Paula.
Tivemos que bater o pé para entrar ‘Como eu quero’. Faltava uma música e o Liminha foi escutar o que a gente tinha. Na época, a gente achava que balada não tinha nada a ver” PAULA TOLLER
O álbum foi um sucesso e vendeu mais de 150 mil cópias. Alheio a todas as discursões pré-lançamento, o público elegeu sua favorita: Como Eu Quero! A canção figurou no topo da lista das mais pedidas de todas as rádios do país e é, talvez, o maior sucesso da banda até hoje.
Mas porque tanto sucesso? Confesso que não entendo. A melodia é ótima, daquelas que grudam nos ouvidos e, basta ouvir uma vez, para passar o resto do dia com a música na cabeça, mas a letra é um tanto quanto excêntrica.
Na música, que é cantada em primeira pessoa, uma mulher fala para o parceiro de um relacionamento aparentemente recente, ou ainda iniciando, o que ele deve fazer para ser uma pessoa melhor, na sua opinião.
Já na primeira estrofe a mulher diz: “tira essa bermuda, Que eu quero você sério”, ou seja, ela não o quer com um traje despojado, ela o quer sério, de calça, paletó, ou sei lá o que. Essa possessão e desvalorização da personalidade do outro é ratificada de maneira muito clara no refrão da música: “Eu quero você como eu quero”, que poderia muito bem ser completado com “E não do jeito que você é”.
E as investidas contra a personalidade do outro só aumentam. A segunda estrofe já se inicia com uma afirmação muito forte: “O que você precisa é de um retoque total, Vou transformar o seu rascunho em arte final”. Podemos nos perguntar: mas afinal, porque ela está com ele? A meu ver, a única resposta está nesta estrofe, onde o rascunho vai ser transformado em arte final, ele vai ser lapidado, vão ser aparadas as arestas. Isso significa que, apesar de tudo o que diz, ela sabe que tem nas mãos uma joia, mesmo que, de seu ponto de vista, esteja em estado bruto.
Na estrofe final, vemos um misto de possessividade e arrogância: “Longe do meu caminho, ‘Cê’ vai de mal a pior, Vem que eu te ensino, Como ser bem melhor”. O pobre coitado, passivo, que está ouvindo isso de sua parceira, só pode concluir que, na ótica dela, a única maneira dele fazer algo certo é ao lado dela, sob sua tutela e que, quando longe dela, só faz m...
Aí eu me pergunto: Porque o sucesso da música? E não sou o único a me perguntar. O próprio Leoni, em um show aqui em Fortaleza disse: “Eu não sei por que vocês gostam dessa música”. Tenho plena consciência que não é necessário se identificar com a situação retratada em uma música para gostar dela, mas no mínimo deve-se enxergar alguma situação louvável, ou que desperte alguma admiração.
De brinde, o manuscrito de Como Eu Quero, que parece ter sido escrito, inicialmente, no masculino.


sexta-feira, 31 de agosto de 2012

As Vitrines – Chico Buarque – 1981



Eu te vejo sair por aí
Te avisei que a cidade era um vão
- Dá tua mão
- Olha pra mim
- Não faz assim
- Não vai lá não
Os letreiros a te colorir
Embaraçam a minha visão
Eu te vi suspirar de aflição
E sair da sessão, frouxa de rir
Já te vejo brincando, gostando de ser
Tua sombra a se multiplicar
Nos teus olhos também posso ver
As vitrines te vendo passar
Na galeria, cada clarão
É como um dia depois de outro dia
Abrindo um salão
Passas em exposição
Passas sem ver teu vigia
Catando a poesia
Que entornas no chão

“As Vitrines” me transmite de maneira imediata uma súplica, um misto de carência e insegurança. Há tanto o que descobrir, e principalmente imaginar, nesta música, que não tive dúvida na escolha para a estreia do blog.
Eu te vejo sair por aí
Te avisei que a cidade era um vão
- Dá tua mão
- Olha pra mim
- Não faz assim
- Não vai lá não
Na primeira estrofe é narrada uma tentativa desesperada, e sem sucesso, de manter o objeto de desejo, a mulher, perto de si. Ao vê-la “ganhar o mundo”, o sujeito faz uma advertência do desconhecido: “Te avisei que a cidade era um vão”. Mas fica claro que ele não teme pela mulher e sim por si mesmo. Teme perde-la.
Mesmo com a advertência, ela vai. Ele tenta conte-la de uma maneira física: “Dá tua mão”, sem êxito. Apela por um contato visual: “Olha pra mim”, sem êxito. Por fim se desespera e implora: “Não faz assim, Não vai lá não”.
Os letreiros a te colorir
Embaraçam a minha visão
Eu te vi suspirar de aflição
E sair da sessão, frouxa de rir
A segunda estrofe já se passa na cidade e, apesar de temer o desconhecido, o sujeito segue a mulher. E lá, um ambiente notadamente familiar para mulher, o deixa atordoado: “Os letreiros a te colorir, Embaraçam a minha visão”. Nem mesmo as emoções vividas no cinema são compreendidas pelo sujeito, que não entende como a amada pode ser leve e descontraída, quando há poucos minutos estava tensa e aflita, por conta do filme.
Já te vejo brincando, gostando de ser
Tua sombra a se multiplicar
Nos teus olhos também posso ver
As vitrines te vendo passar
Na terceira estrofe duas coisas ficam muito claras pra mim. A primeira é que ela se sente completamente à vontade no ambiente da cidade, iluminado, multiplicando suas sombras. A segunda é que fica mais do que evidente que ele só tem olhos pra ela: “Nos teus olhos também posso ver. As vitrines te vendo passar”. É através dos seus olhos que ele vê o que está ao redor, e mais, ele acha que ela é o centro de tudo, não apenas para ele, pois, na sua cabeça, não é a mulher que estar a olhar as vitrines, as vitrines é que a vêm desfilar.
Na galeria, cada clarão
É como um dia depois de outro dia
Abrindo um salão
Passas em exposição
Passas sem ver teu vigia
Catando a poesia
Que entornas no chão
Na última estrofe o sujeito mostra como está incomodado com tudo aquilo, que parece não ter mais fim: “Na galeria, cada clarão, É como um dia, depois de outro dia”. Ele reconhece, de maneira cara e inequívoca, a total falta de atenção dela para com ele e, ao mesmo tempo, a total atenção dele para com ela, num pequeno verso que tem um significado singular: “Passas sem ver teu vigia”.
Por fim, ele é obrigado a ficar com restos, com a sobra, com pequenas coisas, ou ações, que o seu objeto de desejo lhe propicia sem ao menos notar e que, para ele, são um prêmio, é poesia.

Mas ainda não é tudo. No encarte do LP Almanaque, o qual traz a música As Vitrines, há uma brincadeira com espelhamento e rebatimento da letra, como pode ser visto na imagem acima. Para que possamos ler as quatro letras é preciso lançarmos mão de espelho e rotações.
Quando por fim a lemos, de frete para o espelho, nota-se que apenas a primeira estrofe é igual a da música original, sendo as outras três diferentes. Abaixo a letra transversa para comparação.
Eu te vejo sair por aí
Te avisei que a cidade era um vão
-Dá tua mão
-Olha pra mim
-Não faz assim
-Não vai lá não
Ler os letreiros aí troco
Embaçam a visão marinha
Vi tuas fúrias e predileção
Errar sisuda, sã fora de eixos
Doce vento, grandes beijos do jantar
Um militar saber tuas polcas
Bem postos meus versos antolhos
Patinavas, sorvetes, diners
Na alegria, a cara do clã
Um doutor doido me cedia poesia
Um absalão rindo
Pião, sexo, asa, espaço
És súpita virgem avessa
A asteca do piano
Quão sonha no center


Um anagrama! É exatamente isso o que vemos. Cada verso corresponde ao seu verso de origem, exatamente com as mesmas letras, nenhuma a mais, nenhuma a menos. Essa letra alternativa jamais foi gravada, por ninguém, e também seria tolice tentar encontrar sentido em cada estrofe, já que não foi de criação livre.
O sentido está na criação do anagrama. O link está lá, explicito no final da letra original: “Catando a poesia, Que entornas no chão”. É isso que a mulher representa para o sujeito, é assim que ele a vê, em uma realidade distorcida, onde muitas coisas não fazem sentido, onde as vezes é preciso um conhecimento sobrehumano para entende-la.
Finalmente aí um link com a vida de cada um, pois, em proporções que variam de pessoa a pessoa, qual de nós, sujeitos, não tem dificuldade para entender a amada em certos momentos?




Início


Caros amigos,

Sempre gostei de música, principalmente de Música Popular Brasileira. Há muito tempo descobri o quanto é prazeroso conhecer uma letra a fundo entendendo o seu significado, o contexto em que foi escrita, as intenções do autor, etc..

Pretendo aqui dividir esse hobby com vocês e, mais do que isso, aprender novas historias e desmistificar outras estórias...