sexta-feira, 31 de agosto de 2012

As Vitrines – Chico Buarque – 1981



Eu te vejo sair por aí
Te avisei que a cidade era um vão
- Dá tua mão
- Olha pra mim
- Não faz assim
- Não vai lá não
Os letreiros a te colorir
Embaraçam a minha visão
Eu te vi suspirar de aflição
E sair da sessão, frouxa de rir
Já te vejo brincando, gostando de ser
Tua sombra a se multiplicar
Nos teus olhos também posso ver
As vitrines te vendo passar
Na galeria, cada clarão
É como um dia depois de outro dia
Abrindo um salão
Passas em exposição
Passas sem ver teu vigia
Catando a poesia
Que entornas no chão

“As Vitrines” me transmite de maneira imediata uma súplica, um misto de carência e insegurança. Há tanto o que descobrir, e principalmente imaginar, nesta música, que não tive dúvida na escolha para a estreia do blog.
Eu te vejo sair por aí
Te avisei que a cidade era um vão
- Dá tua mão
- Olha pra mim
- Não faz assim
- Não vai lá não
Na primeira estrofe é narrada uma tentativa desesperada, e sem sucesso, de manter o objeto de desejo, a mulher, perto de si. Ao vê-la “ganhar o mundo”, o sujeito faz uma advertência do desconhecido: “Te avisei que a cidade era um vão”. Mas fica claro que ele não teme pela mulher e sim por si mesmo. Teme perde-la.
Mesmo com a advertência, ela vai. Ele tenta conte-la de uma maneira física: “Dá tua mão”, sem êxito. Apela por um contato visual: “Olha pra mim”, sem êxito. Por fim se desespera e implora: “Não faz assim, Não vai lá não”.
Os letreiros a te colorir
Embaraçam a minha visão
Eu te vi suspirar de aflição
E sair da sessão, frouxa de rir
A segunda estrofe já se passa na cidade e, apesar de temer o desconhecido, o sujeito segue a mulher. E lá, um ambiente notadamente familiar para mulher, o deixa atordoado: “Os letreiros a te colorir, Embaraçam a minha visão”. Nem mesmo as emoções vividas no cinema são compreendidas pelo sujeito, que não entende como a amada pode ser leve e descontraída, quando há poucos minutos estava tensa e aflita, por conta do filme.
Já te vejo brincando, gostando de ser
Tua sombra a se multiplicar
Nos teus olhos também posso ver
As vitrines te vendo passar
Na terceira estrofe duas coisas ficam muito claras pra mim. A primeira é que ela se sente completamente à vontade no ambiente da cidade, iluminado, multiplicando suas sombras. A segunda é que fica mais do que evidente que ele só tem olhos pra ela: “Nos teus olhos também posso ver. As vitrines te vendo passar”. É através dos seus olhos que ele vê o que está ao redor, e mais, ele acha que ela é o centro de tudo, não apenas para ele, pois, na sua cabeça, não é a mulher que estar a olhar as vitrines, as vitrines é que a vêm desfilar.
Na galeria, cada clarão
É como um dia depois de outro dia
Abrindo um salão
Passas em exposição
Passas sem ver teu vigia
Catando a poesia
Que entornas no chão
Na última estrofe o sujeito mostra como está incomodado com tudo aquilo, que parece não ter mais fim: “Na galeria, cada clarão, É como um dia, depois de outro dia”. Ele reconhece, de maneira cara e inequívoca, a total falta de atenção dela para com ele e, ao mesmo tempo, a total atenção dele para com ela, num pequeno verso que tem um significado singular: “Passas sem ver teu vigia”.
Por fim, ele é obrigado a ficar com restos, com a sobra, com pequenas coisas, ou ações, que o seu objeto de desejo lhe propicia sem ao menos notar e que, para ele, são um prêmio, é poesia.

Mas ainda não é tudo. No encarte do LP Almanaque, o qual traz a música As Vitrines, há uma brincadeira com espelhamento e rebatimento da letra, como pode ser visto na imagem acima. Para que possamos ler as quatro letras é preciso lançarmos mão de espelho e rotações.
Quando por fim a lemos, de frete para o espelho, nota-se que apenas a primeira estrofe é igual a da música original, sendo as outras três diferentes. Abaixo a letra transversa para comparação.
Eu te vejo sair por aí
Te avisei que a cidade era um vão
-Dá tua mão
-Olha pra mim
-Não faz assim
-Não vai lá não
Ler os letreiros aí troco
Embaçam a visão marinha
Vi tuas fúrias e predileção
Errar sisuda, sã fora de eixos
Doce vento, grandes beijos do jantar
Um militar saber tuas polcas
Bem postos meus versos antolhos
Patinavas, sorvetes, diners
Na alegria, a cara do clã
Um doutor doido me cedia poesia
Um absalão rindo
Pião, sexo, asa, espaço
És súpita virgem avessa
A asteca do piano
Quão sonha no center


Um anagrama! É exatamente isso o que vemos. Cada verso corresponde ao seu verso de origem, exatamente com as mesmas letras, nenhuma a mais, nenhuma a menos. Essa letra alternativa jamais foi gravada, por ninguém, e também seria tolice tentar encontrar sentido em cada estrofe, já que não foi de criação livre.
O sentido está na criação do anagrama. O link está lá, explicito no final da letra original: “Catando a poesia, Que entornas no chão”. É isso que a mulher representa para o sujeito, é assim que ele a vê, em uma realidade distorcida, onde muitas coisas não fazem sentido, onde as vezes é preciso um conhecimento sobrehumano para entende-la.
Finalmente aí um link com a vida de cada um, pois, em proporções que variam de pessoa a pessoa, qual de nós, sujeitos, não tem dificuldade para entender a amada em certos momentos?




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Caros amigos,

Sempre gostei de música, principalmente de Música Popular Brasileira. Há muito tempo descobri o quanto é prazeroso conhecer uma letra a fundo entendendo o seu significado, o contexto em que foi escrita, as intenções do autor, etc..

Pretendo aqui dividir esse hobby com vocês e, mais do que isso, aprender novas historias e desmistificar outras estórias...