Se a dona se banhou
Eu não estava lá
Por Deus Nosso Senhor
Eu não olhei Sinhá
Estava lá na roça
Sou de olhar ninguém
Não tenho mais cobiça
Nem enxergo bem
Eu não estava lá
Por Deus Nosso Senhor
Eu não olhei Sinhá
Estava lá na roça
Sou de olhar ninguém
Não tenho mais cobiça
Nem enxergo bem
Para que me pôr no tronco
Para que me aleijar
Eu juro a vosmecê
Que nunca vi Sinhá
Por que me faz tão mal
Com olhos tão azuis
Me benzo com o sinal
Da santa cruz
Para que me aleijar
Eu juro a vosmecê
Que nunca vi Sinhá
Por que me faz tão mal
Com olhos tão azuis
Me benzo com o sinal
Da santa cruz
Eu só cheguei no açude
Atrás da sabiá
Olhava o arvoredo
Eu não olhei Sinhá
Se a dona se despiu
Eu já andava além
Estava na moenda
Estava para Xerém
Atrás da sabiá
Olhava o arvoredo
Eu não olhei Sinhá
Se a dona se despiu
Eu já andava além
Estava na moenda
Estava para Xerém
Por que talhar meu corpo
Eu não olhei Sinhá
Para que que vosmincê
Meus olhos vai furar
Eu choro em iorubá
Mas oro por Jesus
Para que que vassuncê
Me tira a luz
Eu não olhei Sinhá
Para que que vosmincê
Meus olhos vai furar
Eu choro em iorubá
Mas oro por Jesus
Para que que vassuncê
Me tira a luz
E assim vai se encerrar
O conto de um cantor
Com voz do pelourinho
E ares de senhor
Cantor atormentado
Herdeiro sarará
Do nome e do renome
De um feroz senhor de engenho
E das mandingas de um escravo
Que no engenho enfeitiçou Sinhá
O conto de um cantor
Com voz do pelourinho
E ares de senhor
Cantor atormentado
Herdeiro sarará
Do nome e do renome
De um feroz senhor de engenho
E das mandingas de um escravo
Que no engenho enfeitiçou Sinhá
Certamente
esta é a melhor musica que já vi nascer. É dessas músicas que, quando ouvidas
pela primeira vez, antes de chegar ao final, já se tem a certeza que ficará
para sempre. A melodia é cadenciada, cheia de sons a serem descobertos e já nos
remete a um tempo passado, onde a estória aconteceu. Foi lançada no mais no
disco: Chico, de Chico Buarque.
A música, uma parceria de Chico e João Bosco, é na sua grande parte narrada por um escravo que, com palavras, se defende das
investidas violentas do feitor que o acusa de ter visto sinhá banhar-se no
açude, sem roupa.
Se
a dona se banhou
Eu não estava lá
Por Deus Nosso Senhor
Eu não olhei Sinhá
Estava lá na roça
Sou de olhar ninguém
Não tenho mais cobiça
Nem enxergo bem
Eu não estava lá
Por Deus Nosso Senhor
Eu não olhei Sinhá
Estava lá na roça
Sou de olhar ninguém
Não tenho mais cobiça
Nem enxergo bem
O
escravo inicia sua fala alegando não ter conhecimento do banho de sinhá (Se a dona se banhou), também diz que não
estava no açude, que estava na roça. Numa tentativa quase desesperada, ele diz
que não é de olhar ninguém, mas mesmo que fosse, não tem mais cobiça de olhar
para uma mulher e, mesmo assim se tivesse, sequer enxerga bem.
Além
da negação, que toma conta de praticamente toda a estrofe, há também uma
tentativa de sensibilizar seu algoz, no terceiro verso (Por Deus Nosso Senhor) uma vez que, apesar de obrigados a seguir
alguns costumes cristãos, a grande maioria dos escravos tem crenças africanas.
Para que me pôr no tronco
Para que me aleijar
Eu juro a vosmecê
Que nunca vi Sinhá
Por que me faz tão mal
Com olhos tão azuis
Me benzo com o sinal
Da santa cruz
Para que me aleijar
Eu juro a vosmecê
Que nunca vi Sinhá
Por que me faz tão mal
Com olhos tão azuis
Me benzo com o sinal
Da santa cruz
Na
segunda estrofe, cada vez mais desesperado, o escravo investe todas suas fichas
na tentativa de sensibilizar seu senhor. Ele indaga porque será aleijado (e não
é força de expressão) se está jurando que nunca viu sinhá. Numa tentativa de
confundir, o escravo admite sua inferioridade e indaga porque o feitor sendo
superior irá lhe fazer mal (Porque me faz
tão mal, Com olhos tão azuis).
Por
fim, mais uma referência ao cristianismo (Me
benzo com o sinal, Da Santa Cruz).
Entre
a segunda e terceira estrofe, onde temos uma parte apenas instrumental é
possível identificar um som cadenciado, que depois se torna mais frequente e,
na minha leitura se trata de chicotadas, proferidas contra o escravo.
Eu só cheguei no açude
Atrás da sabiá
Olhava o arvoredo
Eu não olhei Sinhá
Se a dona se despiu
Eu já andava além
Estava na moenda
Estava para Xerém
Atrás da sabiá
Olhava o arvoredo
Eu não olhei Sinhá
Se a dona se despiu
Eu já andava além
Estava na moenda
Estava para Xerém
Após
a seção de tortura a versão apresentada pelo escravo é mudada, e ele passa a
admitir que esteve no açude, no entanto foi levado até lá porque seguia uma
sabiá. Diz também que olhou apenas para as árvores, que não olhou sinhá, no
entanto, automaticamente admite que sabia que ela estava lá.
A
situação do pobre escravo só se complica, pois, na sequencia, ele alega que se
ela tirou a roupa ele já havia saído, ou seja, enquanto ele estava lá, ela
estava vestida, neste caso ele a viu, o que o faz entrar novamente em
contradição.
Por que talhar meu corpo
Eu não olhei Sinhá
Para que que vosmincê
Meus olhos vai furar
Eu choro em iorubá
Mas oro por Jesus
Para que que vassuncê
Me tira a luz
Eu não olhei Sinhá
Para que que vosmincê
Meus olhos vai furar
Eu choro em iorubá
Mas oro por Jesus
Para que que vassuncê
Me tira a luz
Sempre
usando a linguagem da época, e alegando que não viu sinhá, o escravo implora
mais uma vez ao feitor, temendo além de ter seu corpo talhado, ter seus olhos
furado como castigo por olhar quem não devia.
Nesta
estrofe o escravo revela de maneira clara e inequívoca seu sincretismo
religioso, recorrendo no momento maior de desespero à sua crença e à crença dos
seus senhores (Eu Choro em Ioruba, Mas
oro por Jesus).
Por
fim, já descompromissado no tratamento (vassuncê),
e frente a sua pena, ele ainda indaga ao seu algoz com que intuito ele acabou de
lhe cegar.
Agora
a música muda. Quem fala agora é Chico. O vocabulário é atual e até a métrica
dos versos é outra.
E
assim vai se encerrar
O conto de um cantor
Com voz do pelourinho
E ares de senhor
Cantor atormentado
Herdeiro sarará
Do nome e do renome
De um feroz senhor de engenho
E das mandingas de um escravo
Que no engenho enfeitiçou Sinhá
O conto de um cantor
Com voz do pelourinho
E ares de senhor
Cantor atormentado
Herdeiro sarará
Do nome e do renome
De um feroz senhor de engenho
E das mandingas de um escravo
Que no engenho enfeitiçou Sinhá
Chico se classifica
como um cantor com voz de pelourinho e ares de senhor, uma referência às suas
características físicas, com seus olhos azuis e, claro, a sua voz que é meio
rouca e suja, como se diz no meio musical.
Indo bem mais longe
do que em Paratodos (O meu pai era
paulista, Meu avô pernambucano, O meu bisavô mineiro, Meu tataravô baiano)
Chico buscou nos seus ancestrais o seu sangue sarará (mestiço de branco e
negro), onde o branco erá um senhor de engenho (não sei se feroz) e a negra uma
escrava, por quem ele se apaixonou e casou.
Abaixo uma
transcrição do livro Buarque : uma Família Brasileira : Ensaio Histórico
Genealógico, de Bartolomeu Buarque de Holanda, lançado no ano de 2011:
“Eu quis mostrar estes personagens que foram
marcantes na árvore genealógica da família. Acredito que, entre todas as
ramificações, a mais curiosa é a que gerou a união de José Ignácio Buarque de
Macedo (Senhor de engenho) e a escrava Maria José. Apesar de analfabeta, ela
foi a primeira mulher na família a colocar o estudo como prioridade.
Curiosamente, seus descendente fizeram jus à dedicação e geraram figuras como
Aurélio Buarque, Chico Buarque e Cristóvam Buarque, entre outros”
No fim, mas não menos
importante, Chico também se declara herdeiro das mandingas do referido escravo e
entrega que de fato o escravo havia enfeitiçado sinhá e que aqueles que o
castigaram “tinham razão”, dentro de sua ótica.
Ouçam a música, tenham a própria interpretação de vocês, mas tenham certeza que daqui há muito tempo
ela ainda será lembrada, tocada, admirada e terá ainda muitas nuances a serem
descobertas.